quinta-feira, 10 de novembro de 2011
Sobre Cézanne, Perspectivas, Rótulos e Regras ou Sobre Paisagens, Jarros, Maçãs e Amores
Cézanne sempre me foi motivo de desassossego. Levei muito tempo para compreendê-lo. Sabia teoricamente da sua importância (eu usaria centralidade, se este fosse um texto acadêmico, mas não é) para a arte moderna. Mas eu não conseguia ver para além dos olhos viciados do conhecimento... Não achava a saída, não achava a entrada.
Até que no meio do caminho eu entendi, encontrei, descobri... Maravilhado com a revelação, as coisas foram vindo aos poucos. Volumes, espaços e acima de tudo aquilo que me traz aqui nessa hora: Cézanne foi clássico abolindo a regra dura da perspectiva científica e do contorno linear... Em outras palavras, ele devolveu à pintura pós impressionismo, a noção de solidez e estabilidade da arte clássica, sem o uso de uma regra fixa que deveria ser aplicada a tudo... Em Cézanne a regra (ou o procedimento) é criada diante do objeto, da paisagem, do jarro, da maçã... Em Cézanne a regra é fruto da necessidade e ela pode distorcer inverter, virar, quebrar, reconstruir.
Ontem mesmo, olhei em olhos que muito gosto e usei esse exemplo pra coisas cotidianas... Menos Leonardo, mais Cézanne. Menos regras fixas, menos perspectiva científica e mais ajuste diante de cada paisagem que se deixa surgir por entre olhos, bocas e ouvidos.
Mas acontece que foram séculos de pintura clássica e a gente passou a tomar a representação, o ponto de vista monocular ( aquele do ponto de fuga, onde tudo convergia para um ponto só como se tivéssemos só um olho no meio da testa como um monstro de Ulisses) como verdade. Aprendemos até que a verdade existia. Aprendemos que a paisagem estruturada do renascimento era superior sobre aquela que vemos na vida vivida... Duvidamos da paisagem - aquela da brisa no rosto- e acreditamos naquela que nos entregaram como representação. Inventamos regras duras para olhar pra nossas paisagens, maçãs, jarros e amores e perdemos a surpresa de descobri-los novos a cada momento de encontro. Desconfiamos da experiência e lhes encaixotamos em regras prévias... Sejamos mais Cézanne...
Enfim, tô escrevendo chato, prolixo e intelectualoide... Mas acontece que eu to tentando chegar à idéia que eu circundo e a escrita é meu único caminho pra isso. Aliás, só pra constar, a escrita é sempre meu único caminho, minha única possibilidade de encontro, expiação e redenção.
Sabe, a gente viciou na regra... Quando alguém (ou nós mesmos) marca a nossa testa com um rótulo, quando alguém (ou nós mesmos) nos dá um nome,um lugar... a gente, quase que na mesma hora sai correndo, pega a nossa perspectiva renascentista e sai aplicando pra natureza toda...Aí vem o balé das obrigações, das expectativas, daquilo que devemos ser pra corresponder àquilo que disseram que éramos... Perdemos a invenção, perdemos a criação, nos perdemos...
Paisagem, maçãs, jarros, amores... Existem sempre maneiras prontas pra olhá-los e representá-los... Existem sempre maneiras mais ou menos adequadas pra pensá-los, enquadrá-los e assim, perde-los.
Não tenho nada contra o clássico, absolutamente nada. Mas é possível experimentá-lo sem perder a potência da criação. Foi assim que Cézanne de longe conversava com aquele vigor que nasceu das regras das pinturas de Rafael sem nunca esquecer de olhar primeiro pro mundo e a partir dele inventar novas formas de solidez, estabilidade. Uma solidez e uma estabilidade tão fugidias, pois que já não serviam pro próximo quadro. E aí era hora de inventar de novo. Não sei se ficou claro o que eu digo com pinturas, paisagens, jarros, maças, amores... Mas não precisa. Cada palavra aqui cai diferente no meio das naturezas vivas daqueles que por acaso me lêem. Cada escrita que me é salvação é ao mesmo tempo invenção e coisa nova pro novo olho-mente que a encontra. Porque na paisagem da palavra assim como na das maçãs, jarros e amores, adentra-se delicadamente quando se compreende que não existe regra, rótulo, palavra de ordem (embora essa pareça uma).
Legendas:
Imagem 1: A transfiguração, Rafael Sanzio
Imagem 2: Natureza Morta, Cézanne
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